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ROSI, A VIDA COM POESIA

21/04/2024

CHICO GUIL

Há exatamente 30 anos, em março de 1994, conheci a professora Rosi Kaminski. E tive o gosto, nos anos seguintes, de conhecer, por meio dela, amplitudes inimagináveis da arte literária. 
Dentre outras coisas, ensinou-me como Antonio Callado ritmava seu texto utilizando uma metralhadora de vírgulas.

Apresentei-lhe um texto que pretendia ser um romance. Rosi devolveu-o recortado em cem pedaços, com anotações críticas em todas as páginas, o que provocou-me um tremendo mal-estar. 
— Você escreve para si mesmo. Se quer ser lido, escreva para as pessoas. Seu texto precisa conversar com elas!

Somente a partir de então, posso dizer que escrevi algo digno de ser lido.

Eu cursava Letras na Unicentro. Rosi surgiu em nossa sala de aula trajando um vestido de brim chumbo sobre o corpo avantajado. Os alunos arregalaram os olhos, admirados com a grande mulher que se apertava entre a mesa e o quadro negro.

— Olá, tudo bem? — disse ela, com um sorriso jovial. — Estou aqui pra falar de literatura com vocês. Antes de tudo, peço que me perdoem por não comparecer nos primeiros dias. Estive resolvendo umas questões aí, meio chatas, mas inadiáveis. 

Não poderia nos dizer que naqueles dias estava conspirando, com um grupo de professores e funcionários, para derrubar a diretoria da jovem Universidade Estadual do Centro Oeste.

Enquanto falava sobre a importância da literatura, Rosi extraía um livro da bolsa. Folheou-o, encontrou a página que procurava e solicitou um voluntário para copiar um texto no quadro. Como a noite era longa e eu já estava entediado, levantei o braço. 

— Este é um poema de Manuel Bandeira — continuou Rosi, entregando-me o livro aberto. — Peço que copiem, porque depois vamos trabalhar com esse texto.

Encostou-se numa parede lateral e ficou apreciando meus movimentos. O trabalho decorreu em silêncio, com a professora enviando sorrisos aos que se arriscavam a encará-la. Chegando ao extremo do quadro, aguardei que todos copiassem e perguntei se poderia apagar. Rosi consentiu, apaguei e continuei escrevendo. O texto já ultrapassava a metade do quadro, quando a professora franziu a testa e mirou-me com uma expressão severa. Estava prestes a dizer algo, mas seus músculos faciais relaxaram, os olhos iluminaram-se e os lábios desenharam um riso discreto. Ao final, aguardei os colegas finalizarem a cópia, tornei a apagar e preenchi o quadro mais uma vez.

Por um instante, achei que ela poderia ficar nervosa, pela interferência que fiz no poema.

— Achei que o Bandeira poderia ter dado um final diferente — disse-lhe ao fim da aula. — Mas não sei se ele vai me perdoar...

— Ele tinha um espírito generoso — respondeu a professora. — Acho que entenderia, sim. É um dos meus favoritos. Mais sincero que o Drummond, embora menos musical... 

E a partir dessa noite entrei numa corrida vertiginosa, com Rosi e os professores e funcionários da oposição, a derrubar a diretoria e a transformar a Unicentro em algo mais que um colegião de bairro. Mas acima das lutas que travamos, conspirando nos corredores, nas salas, nos bares e restaurantes de Guarapuava, havia a poesia, que Rosi cultivava como se vivesse um sonho da Europa. Contou-me que numa jovem tarde de domingo, nos anos 1970, conversava com um namorado que gostaria de ver transformado num príncipe, e naquele instante olhou, por entre as árvores da praça Cleve, os brilhos da cidade, e lembrou-se de uma aventura que talvez houvesse vivido no Velho Mundo. Andando pela Rua XV de Novembro iluminada, ela dizia ao companheiro que Guarapuava era Paris. “Nós vivemos em Paris. Vivemos em Paris!”.

Nas estantes de sua biblioteca, livros com bordas maltratadas pelo manuseio. Lá estavam Baudelaire e Rimbaud, seus poetas franceses. Além de Quintana, Pessoa, Whitman, Morrison, Pound. Eram seus “amigos de papel e tinta”. E a mim, que nunca economizei uma grama de gordura sequer, ela chamava “poeta de ossos”.

Rosi tinha uma mente cultivada, que proporcionou aos seus amigos — e também aos  adversários — momentos de grande intensidade. Como num debate, do qual ela participava como candidata a diretora do Campus de Guarapuava. O candidato opositor, do Departamento de Matemática, perguntou-lhe se “dois e dois é quatro ou vinte e dois”. E Rosi, com seus gestos sempre ousados, cujas mãos pareciam sempre querer abarcar o mundo, respondeu: “Meu caro professor, como todos sabem, a matemática é inexata. Assim como um e um podem dar três, dependendo do nível hormonal dos envolvidos, dois e dois também podem dar um, dependendo da força do enlace. Ou cinco, ou seis, se estiverem bêbados, podendo ultrapassar os vinte e dois sem grande dificuldade se forem delirantes”.
Quem conheceu Rosi, continuou andando com maior riqueza na alma. Porque a vida só vale a pena se for poesia, parece ter-me dito ela, ou Fernando Pessoa...

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