Opinião

A ALMA COLORIDA

08/01/2019

CHICO GUIL

Schopenhauer, Nietzsche e outros luminares do século XIX trouxeram ao Ocidente a noção oriental de que o saber estende-se para além da lógica dura e limitadora dos pós-socráticos. Causaram espanto e mal-estar, porque é sobre a “lógica” e a “objetividade” que se ergueram todos os impérios europeus, desde suas construções jurídicas até suas cidades salomônicas. Ao beber daquela nova fonte muitos se encheram de júbilo. Escritores como Hermann Hesse e John Steinbeck mostraram a vida dos homens errantes, que davam as costas ao processo de acumulação de bens e capitais para viver a liberdade. Havia algo maior para se fazer além de prédios, instituições e códigos de conduta. Encantados com aquelas leituras, muitos jovens renunciaram ao conforto e às regalias para entrar nessa aventura do desapego. Os beatniks são fruto dessa busca. Queriam mostrar que a borboleta estava abandonando o casulo. E a humanidade teve a oportunidade de ver estampada nos rostos, nos gestos e nos corpos daquelas pessoas a sua porção colorida e lúdica. Era a alma humana que aflorava, em toda a sua exuberância! Era pintada de um matiz intenso, era livre e generosa. Mas depois retornou às sombras, criou para si um novo casulo.

Apesar de todos os discursos sobre nossa degeneração ética, a humanidade mantém seu estado de pureza inicial. Cada criança que surge está plena daquela beleza primitiva e estará a cada novo nascimento. Mas o mercado soube incorporar aqueles anseios legítimos aos seus propósitos de expansão, apresentando nas vitrines as mesmas roupas e artefatos representativos daquele amor e daquela liberdade, porém mais sofisticados e atraentes. Sapatos, camisetas, motocicletas e milhares de outros objetos, tingidos de cores vibrantes, foram os chamarizes para a geração hippie e um retorno ao mundo do capital. Em breve os jovens estavam novamente enredados no processo de acumulação, onde vigora todo o egoísmo e as sombras ancestrais. Aquelas pessoas naturalmente criativas e revolucionárias optaram pelo conforto e a segurança, em vez do amor e da liberdade! Apesar do colorido aparente, na cultura do agora a alma está novamente blindada em tons monocromáticos.

No universo mercadológico, os gestos são medidos para esconder a verdade. Expandem-se até um limite suportável, além do qual encontram o que se considera “ridículo”. Mas o que temos aqui é o medo de perder a razão, de parecer frágil e diferente. O medo é o que nos obriga a enterrar a alma no mais fundo dos nossos temerosos corações. A alma, ou a verdade do nosso ser, muitas vezes pode tornar-se dura, cruel e dolorida, mas é, enfim, a nossa verdade. Deveria ser tratada como uma jóia — lapidada, polida e mostrada — não como uma vergonha! Mas sociedade e suas tradições estimulam a guardar as vergonhas e sufocam violentamente a apresentação das verdades.

Em seu livro “Minha fé”, Hesse apresenta dois jovens que se encontram por acaso numa cabine de trem, e que precisam trocar algumas palavras devido à circunstância de viajar num mesmo ambiente. Eles resumem o diálogo a monossílabos, com receio de mostrar o que trazem dentro de si. De que forma se manifestariam essas almas se fossem livres?

“Se (...) um desses jovens fizesse o que realmente quer e sente, estenderia a mão ao outro ou, passando-lhe a mão pelo ombro, diria talvez isto: ‘Deus! Que linda manhã, tudo maravilhoso e estou de férias! Não acha minha gravata bonita? Tenho maçãs na mala, você não quer uma?’”.

Mas é claro que ele não fará isso. Deixará sua alma bem escondida, para que se manifeste somente numa hora extrema.

“Oh, almas tímidas!” — continua Hesse. — “Quando irão vocês aparecer? Talvez belas e amigas, numa vivência libertadora, em união com uma noiva, na luta por uma crença, em ação e sacrifício — talvez bruscas e desesperadas, numa ação apressada de impulso do coração tiranizado, dissimulado, obscurecido, numa acusação selvagem, num crime, em estado de pavor? (...) Iremos desistir, iremos acompanhar a multidão e a inércia, sempre e de novo engaiolar o pássaro, continuar a passar anéis pelo nariz?”.

E a alma, a nossa verdade, permanece escondida, porque acreditamos que ela inteira e exposta nos delata e condena. Poucos têm a oportunidade de constatar que a verdade é a porta para a felicidade real.

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